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Fusão nuclear é pop e potencialmente transformadora, mas ainda distante

Por Folha de São Paulo

20/04/2024 8h00 — em
Variedades



SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Agora que energia limpa é pop, por todo canto você acha declarações de avanços sobre o tema. Mas, entre todas as evoluções --as reais--, uma teve um brilho próprio: a fusão nuclear, forma de obtenção de energia que, sob o domínio humano, é citada como de potencial revolucionário. Afinal, estamos falando da reação que mantém o Sol ardendo sobre nossas cabeças.

O fato é que a fusão tem saído de um campo quase ficcional para uma realidade, marcando presença em jornais e em revistas científicas. Porém, tudo indica, uma realidade ainda um tanto distante.

De forma resumida, a fusão nuclear ocorre quando dois núcleos de hidrogênio se fundem e formam um átomo de hélio. Isso só é possível quando as partículas estão a milhões de graus Celsius --em forma de plasma, o quarto estado da matéria--, sob alta pressão. Quando o hélio se forma, o resultado são enormes quantidades de energia, o que poderia servir à humanidade.

Curiosamente, o domínio da fusão sempre foi pensado como um processo que poderia mudar o mundo, mas, ao mesmo tempo, algo para o futuro. Pesquisadores ouvidos pela reportagem contam que, de 30 a 40 anos atrás, já se falava em fusão para dali 30 ou 40 anos.

A realidade prática e comercial distante da fusão implica em outro ponto: crise do clima. Resumidamente, não se pode contar com ela para conter esta crise neste século. O que continuamos a emitir vai afetar o planeta no longo prazo. Então, em teoria, pouco adianta termos, com a concretização da fusão, uma fonte enorme de energia limpa em 2040, 2050, 2060, pois o planeta já terá "assinado" um contrato de alguns graus celsius e, consequentemente, de diversas catástrofes ambientais constantes --como já vemos.

Mesmo sem poder ajudar no controle da crise climática que temos em mãos, é inegável que os últimos anos viram uma importante evolução relacionada a essa tecnologia.

Cientistas finalmente conseguiram, a partir da fusão, gerar mais energia em relação à que foi gasta para colocar o processo em andamento --algo básico ao se pensar que a ideia é dar energia para as pessoas.

Mas tal evolução carrega uma estrelinha, um asterisco: o ganho líquido de energia não ocorreu de forma plena. A geração de mais energia do que foi consumida leva em conta somente uma parte do processo.

O LLNL (Laboratório Nacional Lawrence Livermore), na Califórnia (EUA), responsável pelo importante feito, disse que a quantidade de energia necessária para disparar os poderosos 192 feixes de laser que dão início à reação de fusão é maior do que a energia que foi gerada. (Essa é uma das formas de obter a fusão, feita a partir do que chamam de confinamento inercial; a outra, com uso de máquinas chamadas tokamaks, faz uso de confinamento magnético.)

Portanto, não se trata de um ganho líquido prático. O site do laboratório aponta quão maior é o gasto de energia para gerar a fusão: "[...] a energia consumida pela instalação de laser NIF [National Ignition Facility], é tipicamente cem vezes maior", em relação à energia que, de fato, incide sobre o alvo que gerará a fusão.

Independentemente disso, o laboratório realizou a façanha. Conseguiu e repetiu, o que é essencial para confirmar achados científicos.

Art Pak, pesquisador do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, afirmou à Folha de S.Paulo que a ignição --segundo o LLNL, chegar à ignição significa produzir mais energia do que é entregue ao alvo-- já foi atingida, ao todo, cinco vezes.

A primeira vez ocorreu em 12 de dezembro de 2022; outras três, de 30 de julho de 2023 até 30 de outubro do mesmo ano.

A mais recente foi em 12 de fevereiro deste ano, que chama a atenção pela quantidade de energia gerada em relação aos outros casos. Neste caso, os cientistas do LLNL jogaram 2.2 MJ (megajoules) sobre o alvo --uma cápsula onde está o combustível-- e conseguiram de volta 5.2 MJ, ou seja, mais do que o dobro da energia aplicada, algo consideravelmente superior aos testes anteriores.

"Estamos nos preparando para o próximo experimento de energia a laser de 2,2 MJ, que acontecerá no final da primavera ou início do verão [no Hemisfério Norte]. Tentaremos aumentar ainda mais o desempenho modificando o alvo para aumentar a compressão", diz o pesquisador do LLNL. "Cada repetição traz grande satisfação, pois, em pouco mais de um ano, passamos de demonstrar que a ignição por fusão é possível para mostrar que podemos fazê-lo consistentemente."

Vinícius Njaim Duarte, pesquisador do Laboratório de Física de Plasma da Universidade de Princeton, nos EUA, chama de marco científico e tecnológico o que foi feito no LLNL.

Mas há o "mas". "Se você é agnóstico com respeito a toda a parafernália em volta e olha só para a cápsula, sim, você fez chegar 2 [MJ], produziu 3 [MJ, no primeiro experimento]. Mas, se você olha para tudo o que vem antes, o laser em si não é tão eficiente. Não é diminuindo o feito. É incrível", diz Duarte.

Isso ainda mostra a distância da fusão para uma realidade comercial.

"A resposta é desconfortável para quem quer uma resposta otimista. Tem havido avanços pequenos, porém significativos. Mas estamos distantes da factibilidade", afirma Ildo Sauer, vice-diretor do IEE (Instituto de Energia e Ambiente), da USP, com doutorado em engenharia nuclear pelo MIT e ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras.

Como Sauer vê a tecnologia ainda como incipiente, para ele é até mesmo difícil imaginar as possíveis posições que ela pode ocupar na realidade energética futura.

Já Renato Machado Cotta, membro da ABC (Academia Brasileira de Ciências), professor da COPPE/UFRJ e consultor técnico da diretoria geral de desenvolvimento nuclear e tecnológico da Marinha do Brasil, enxerga na fusão a possibilidade futura de uma fonte de energia de base, assim como são hoje a energia nuclear, em alguns países, a hidroeletricidade no país, e o gás natural --com a diferença de a fusão ser limpa.

"Com combustível mais abundante, com um impacto ambiental reduzido e confinado em uma área relativamente pequena. Então é interessante", diz, sobre a fusão, Cotta, que é ex-presidente da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear).

Cotta ressalta a importância, porém, de o pensamento ser direcionado para mosaicos energéticos, com diversas fontes contribuindo para as matrizes energéticas, citando, por exemplo, o também limpo "hidrogênio, que se fala tanto; verde, rosa, cor de abóbora", brinca o pesquisador.

Sauer, por sua vez, defende que o problema da humanidade não é tecnológico, falta de fontes de energia ou quantidades. "As fontes atualmente existentes podem atender com sobra toda a demanda hoje e futura", diz, citando as energias solar, eólica e hidráulica.

"A ciência é sólida", afirma Sauer, em relação à fusão. "Mas a tecnologia, a sua inserção e as incógnitas superam em muito qualquer rasgo de certeza que se tenha."

Se há cuidado de um lado, há investimentos de bilhões, envolvimento de grandes nomes e animação de outro.

Recentemente, a Helion Energy, empresa que tem como principal investidor e presidente do conselho Sam Altman, CEO da criadora do ChatGPT, prometeu ter pronta, em 2028, a primeira usina de energia à fusão nuclear. A promessa veio junto com um primeiro cliente: a Microsoft.

Pak, do LLNL, um dos responsáveis pelo feito de ganho quase-líquido de energia, é consideravelmente mais cuidadoso com prazos.

"Ao mesmo tempo em que acredito que a façanha do LLNL tenha evoluído a possibilidade de energia comercial a partir da fusão, ainda é um tremendo desafio, com vários obstáculos técnicos a superar", afirma Pak. "Há tantas variáveis que é difícil estimar quanto tempo levará. No entanto, quanto mais esforço e cooperação mundial colocarmos nisso, como espécie, mais cedo acontecerá."

"Vá rápido e quebre coisas" era o lema da empresa Meta (antigo Facebook) e de seu fundador, Mark Zuckerberg, até as coisas começarem a sair do controle.

O espírito da ideia parece continuar presente no Vale do Silício, lar do ChatGPT. Altman, em uma publicação de 2021, diz: "Vá rápido. Lentidão em qualquer lugar justifica lentidão em todo lugar. [...] Essa semana em vez da próxima. Hoje em vez de amanhã".

Resta saber quando ocorrerá e qual será a reação resultante do choque entre a tecnologia da fusão nuclear e as filosofias empresariais do Vale do Silício.


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O Portal do Holanda foi fundado em 14 de novembro de 2005. Primeiramente com uma coluna, que levou o nome de seu fundador, o jornalista Raimundo de Holanda. Depois passou para Blog do Holanda e por último Portal do Holanda. Foi um dos primeiros sítios de internet no Estado do Amazonas. É auditado pelo IVC e ComScore.

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